TANIA QUARESMA

"O mestre na arte da vida faz pouca distinção entre o seu trabalho e o seu lazer, entre a sua mente e o seu corpo, entre a sua educação e a sua recreação, entre o seu amor e a sua religião. Ele dificilmente sabe distinguir um espaço do outro. Ele simplesmente persegue sua visão de excelência em tudo que faz, deixando para os outros a decisão de saber se está trabalhando ou se divertindo. Ele acha que está sempre fazendo as duas coisas simultaneamente."
Texto Zen(autor desconhecido)

Olá pessoal
Meu nome é Tânia Quaresma, nasci em 1950 e sou cineasta. Minha vida profissional começou aos 16 anos. Passei pelas mais diversas funções do universo da fotografia, televisão, cinema e vídeo. Sou viúva e tive um filho com 17 anos. Nasci em Belo Horizonte, Minas Gerais, e passei a infância mudando de uma cidade pequena para outra, convivendo com gente simples e ligada à natureza.
Meu pai era advogado e acreditava na justiça, no diálogo e na paz. Minha mãe cuidava da casa. Nosso dinheiro nunca foi muito farto, no entanto, comparando com a pobreza da região, éramos elite. Isso me incomodava bastante. Não podia compreender o fato de uns terem muito e outros não terem nada.
Quando fiz 7 anos, nasceu minha irmã e nos mudamos para Mato Grosso. Com tanta mudança, não conseguia ter amigos permanentes. Tudo passava: pessoas, colégios, animais, paisagens...
Nessa época, as coisas lá em casa modificaram-se muito. Eu já não era a filha única e minha mãe não tinha a mesma paciência. Como eu era cheia de energia e com idéias próprias sobre o que devia e não devia fazer, incomodava muito. Fui então mandada para um internato de freiras, no sul de Minas. Nesse colégio estudavam as filhas dos fazendeiros ricos da região. Poucas meninas como eu, entravam ali graças à alguma meia bolsa ou ajuda de madrinha. Lembro que não podia participar de nenhuma atividade extra porque exigiam pagamento e eu não tinha dinheiro algum.
Uma noite, projetaram cinema no colégio. Nunca me esqueço: era o filme” Os 10 Mandamentos” e não pude comprar ingresso. Fiquei chorando, depois de tentar assistir pela fresta da janela e ser apanhada por uma freira. Ela me fez voltar ao dormitório vazio, dizendo que filme era para quem tinha dinheiro.
Aquilo me bateu fundo na alma Eu adorava cinema! Fiquei interna 2 anos.


Quando tinha 14 anos, aconteceu o golpe militar. Lembro de minha mãe queimando pilhas de livros de meu pai. Mudamos para São Paulo e ali continuei estudando em um colégio público.
Um dia, visitando uma exposição de artes plásticas, conheci Nelson Quaresma um pintor, de 23 anos. Nos quadros dele reconheci cenas que observava na infância e não sabia como expressar: o abandono pessoal e social no olhar espantado, principalmente das crianças. Fiquei apaixonada pelo trabalho e pelo artista.. Engravidei, nos casamos e logo nasceu meu filho, Alexandre.
Passamos por grandes dificuldades financeiras e de convivência. Além de jovens e inexperientes, havia o conturbado momento político do país.
Resolvi procurar emprego e como não sabia fazer nada de especial, aceitei ser balconista de uma pequena loja de fotografias que ficava entre o colégio onde estudava à noite e nosso pequeno apartamento. Às vezes acordava de madrugada com um choro de criança, e demorava um pouco para entender que era meu filho quem chorava e que precisava levantar e alimentá-lo. Nas horas de almoço, aprendi a fotografar, revelar e ampliar. Tinha decidido ser fotógrafa.
O casamento ia mal. Discordávamos em relação a vários assuntos, principalmente a educação de nosso filho. Eu era contra castigos corporais. Acreditava que com carinho tudo podia ser melhor.
Quando me senti mais segura, fiz teste e fui contratada como fotógrafa do Jornal Folha da Tarde, do grupo Folha de São Paulo. Fui também reprovada no colégio público noturno onde estudava , na matéria “trabalhos manuais”, por não ter conseguido bordar uma camisa de neném. Achei aquilo o cúmulo e deixei a escola formal de lado.


Adorava trabalhar no jornal. Era uma verdadeira escola: ir aos lugares onde estavam acontecendo fatos importantes, fotografar, ouvir as pessoas... Era bom aprender coisas novas.
O casamento acabou. Fui morar só com meu filho.


O Brasil fervia. Movimentos estudantis e operários por toda parte. A profissão de fotógrafa começava a ficar perigosa, mas eu queria estar junto dos movimentos populares, fotografando, denunciando os abusos policiais. Nosso jornal era nìtidamente a favor da luta dos operários e estudantes.


Depois de fotografar os jogos olímpicos no México, fui convidada pelo governo cubano para conhecer a Ilha. Lá, fotografei e fiz treinamento de guerrilha: aprendi a atirar com metralhadora, plantei cítricos e cortei cana.
Gostei de Cuba, mas saí de lá com a certeza de que a luta armada não era meu caminho.
De volta ao Brasil, não me prenderam por pura sorte. Nos jornais, companheiros de redação apareciam em fotos: mortos ou presos. Isso me deixava perplexa. Era difícil viver em um país, quando se queria mostrar a realidade e ela estava em pé de guerra: fome, violência, torturas.
Eu não queria fazer fotos de propaganda, só para ganhar dinheiro. Fotografar para mim era um ato de amor, de crença. Precisava acreditar no que fazia. Passei a trabalhar em jornais e revistas como fotógrafa independente. Isso me possibilitava escolher temas e enfoque.
Um dia, senti vontade de ver minhas fotos em movimento. Entrei como cinegrafista estagiária na equipe do Jornal Nacional, da TV Globo de São Paulo. Logo minhas imagens foram ao ar.
A TV Cultura de São Paulo iniciava um novo jornal semanal com grandes reportagens temáticas. Fui contratada e filmava um curta-metragem por semana.
A equipe de uma TV alemã que passava pela cidade, viu meu trabalho e acabei ganhando uma bolsa de estudos para aperfeiçoamento profissional na Alemanha. Deixei inicialmente meu filho com meus pais e embarquei. Não falava ainda uma palavra de alemão, mas estava confiante.
Logo que aprendi um pouco da língua e consegui juntar algum dinheiro lavando pratos, mandei vir Alexandre.
Durante o ano e meio que moramos juntos naquele país, foi possível olhar a vida de um modo mais calmo e profundo. Estar ganhando, mesmo pouco, para estudar, liberava tempo. Pude pesquisar e me dedicar a fazer cinema e tv, experimentalmente.
Minha área favorita continuava sendo a fotografia, a imagem, a câmera. Esse era um campo profissional quase que totalmente masculino, tanto na Alemanha quanto no Brasil.
Alexandre freqüentou uma escola gratuita para filhos de operários. Para pagar as despesas dele e as minhas, o dinheiro da bolsa era pouco. Por isso, tive que trabalhar nas horas de folga, em uma floricultura do metrô. Era corrido e às vezes muito duro, estar com uma criança pequena em país estrangeiro.
Nas noites em que precisava montar um filme, ele dormia num alcochoado ao lado da moviola. Talvez tenha sido, no final das contas, uma boa experiência para os dois.
Meu filme-diploma foi sobre os turcos que trabalhavam em Berlim. Sentia na pele a problemática porque, muitas vezes, era confundida com uma turca.


Voltando ao Brasil, não faltou trabalho. Produzi e fiz câmera para TVs alemãs inúmeras vezes. Ganhava bem.
Meu pai tinha sido cassado como subversivo e aposentado com 1/3 do salário, o que não dava para pagar suas contas. Lembro que podia até mandar dinheiro para ele nessa época.


Eu vivia no Rio de Janeiro, circulava no meio artístico, namorava muito, ganhava bem e gostava da minha profissão. Alexandre estudava em colégio particular, fazia Judô, inglês e começava a só querer usar roupas caras e da moda.
Meus ideais políticos (não partidários, porque nunca me filiei a partido algum) ficaram adormecidos.
Depois de participar de um filme de longa metragem no interior de Pernambuco, como assistente de câmera e fotógrafa de cena, sofri uma lesão na parte vital do olho direito e perdi a visão central. Isso me jogou em um espaço de pânico e insegurança.
De repente, percebi a efemeridade da matéria. Foi como se o olho, ao invés de ter ficado cego, tivesse resolvido olhar para dentro, para minha realidade interior. Aí vieram as clássicas perguntas filosóficas: mas afinal, quem sou eu, de onde vim, o que faço aqui nesse mundo?
Foi um período duro. Perdi a profundidade de campo visual e tinha medo de tudo: não conseguia dirigir, descer uma escada, nada!
Mas durou pouco. Com dúvidas existenciais ou não, precisava trabalhar para sustentar meu filho. E tinha que ser realista: mulher em campo técnico, quase que totalmente masculino , tudo bem. Mas além de ser mulher, ter visão em um olho só? Era demais!
Assim, resolvi produzir e dirigir meus próprios filmes. Poderia, dessa maneira, fazer pelo menos a segunda câmera...


Acabava de voltar do sertão nordestino. Aquelas imagens fortes de pobreza e fome me impressionavam cada vez mais. Nas inúmeras idas à feira de Caruaru, a arte desse povo sofrido, colocada ali a venda, junto com feijão, carne e frutas, me encantou. Os livros de poesia, pendurados em cordões, como bandeiras em festa, falavam do universo mágico e doloroso do nordeste brasileiro, de forma alegre, simples e direta.
Decidi então que meu primeiro filme seria um documentário sobre o Nordeste, tendo como fio condutor a Literatura de Cordel. Montei o projeto e saí em busca de dinheiro.
Consegui alem do filme, produzir um disco com a trilha sonora e shows com os artistas que filmei. Eles eram bons no que faziam e viviam de sua arte. Eu tentava ser assim também.
O filme, meu primeiro documentário de longa metragem Nordeste: Cordel, Repente, Canção, foi exibido no Brasil e em vários outros países. Em alguns, estive presente. Era bom mostrar minha terra, com suas incríveis contradições, mas cheia de força, arte e cor.
O que mais me sensibilizou foi o fato das pessoas poderem se ver e se ouvir. Dar voz a elas , era o que eu mais queria.
E elas se acharam bonitas, importantes e riram de si próprias. Até o cego Oliveira, que tocou rabeca e cantou no filme, estava na primeira fila, assistindo tudo pelo olhar de sua mulher:
-“É tu, Oliveira, bonito. Ta lá, tocando a rabequinha...”
Isso foi em 1975 e eu tinha 25 anos.


De 1976 a 1979, produzi e dirigi em parceria com o músico Luiz Keller, o projeto Trindade , que reuniu grandes instrumentistas brasileiros (Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Wagner Tiso, Nivaldo Ornellas e muitos outros), em 12 documentários de curta- metragem que juntos, formavam um longa. O projeto envolveu também a produção de discos e shows.


A vida no Rio de Janeiro virou uma loucura. Drogas por toda parte. Eu fumava, entre outras coisas, dois maços de hollywood por dia. Andava nervosa, via pouco meu filho e tentava compensar a ausência comprando presentes. E trabalhava sem parar.
Foi nessa época que o pai do Alexandre, que tinha se tornado meu grande amigo, foi morto por meninos de rua em São Paulo, com um tiro na cabeça. Alexandre, aos prantos, queria saber porque existiam” pivetes e trombadinhas”. Sentia raiva e queria vingança. Foi um momento forte, de decisão, de ruptura. Ali, optei por combater, de maneira pacífica, as causas que geram a fome, a dor e a violência. Tentei explicar ao Alexandre que a responsabilidade, não era só dos meninos, era uma questão social.
Mas qual seria a saída, se eu não acreditava em luta armada?


Em 1979, depois do lançamento do meu segundo filme documentário de longa metragem, Trindade: Curto Caminho Longo, e aproveitando o fim de um namoro conturbado, resolvi mudar radicalmente de vida. Foi quando tive um sonho...


Crianças de todos os pontos do Brasil, atraídas pelo som de um estranho flautista, reuniam-se em Brasília.
Seguindo a flauta mágica, encontravam uma passagem que dava acesso a uma feira/escola eco/ tecnológica, montada nos arredores da capital. Nela, crianças e adultos com coração de criança, trabalhavam em uma rede mágica de comunicação, que envolvia as pessoas em ondas amorosas, que faziam com que elas ficassem interessadas na preservação do planeta e na construção de um mundo novo, mais justo, baseado nas leis do amor.


Acordei com aquelas imagens fortes ainda vivas na memória. Anotei tudo e achei que estava diante do argumento do meu primeiro filme de ficção.
O sonho passava nitidamente uma mensagem de solidariedade, trabalho em grupo e tecnologia a serviço da vida e da educação.


Fugindo da vida delirante que levava no Rio de Janeiro, mudei com meu filho para São Paulo, onde não conhecíamos quase ninguém.
Trabalhei na TV Bandeirantes em um programa chamado Comunidade. Nele, mostrávamos soluções encontradas por pessoas quase sem recurso nenhum, mas que juntas, resolviam seus problemas comuns. Eu registrava pela periferia de São Paulo, o universo desses movimentos comunitários, sementes de ONGs que existem até hoje.
A Turma da Touca, que se reunia em uma vila que não tinha esgoto nem água encanada, e onde as ruas eram ainda de barro, me chamou particularmente a atenção. Pensei que seria uma boa oportunidade de meu filho e eu cairmos na real.
Alugamos uma casinha e passamos a viver ali.
Foi um belo período. Aquelas pessoas nos ensinaram muitas coisas: fazíamos compras comunitárias, reuniões semanais, grupo de teatro, construíamos creche... Ali desenvolvi a primeira oficina de vídeo com crianças.
O resultado do nosso trabalho passou na TV Bandeirantes e assistimos todos juntos. Foi um sucesso na vila.


Mas eu achava aquilo tudo provisório porque acreditava que minha meta era fazer o filme que batizei com o nome de Feira do Sonho. Tudo não passava então de “laboratório, locação, pré produção”... O ego cineasta, me dominou e passou a me comandar em tempo integral.


Um dia pensei: se o filme que quero fazer tem a capital do Brasil como cenário principal, preciso mergulhar nela...
Em 1983, nos mudamos para Brasília, assim de repente, sem planejar.
Ao mesmo tempo que formatava o projeto de captação de recursos para o filme, precisava trabalhar para sustentar meu filho e eu.
Convidei então um grupo de jovens artistas brasilienses, a maioria totalmente inexperiente em televisão, para fazer comigo uma série de programas de tv sobre a cidade , para comemorar seus 25 anos.
Nossa produção independente funcionou como uma oficina , onde as pessoas iam aprendendo na prática.Meu filho começou a fazer câmera e a partir daí, nunca mais parou. Conseguimos patrocínio e espaço para veiculação.
Nossos programas foram ao ar. Fizemos mais duas séries semanais, sempre abordando a história da construção da cidade, sob o ponto de vista dos operários. Centenas de pessoas foram entrevistadas, principalmente os velhos pioneiros, que vieram construir a nova capital, acreditando estar criando um espaço mais justo para viver com suas famílias.
Não foi bem isso que aconteceu. Hoje, eles têm dificuldades para entrar nos palácios que ajudaram a construir. Moram nas cidades satélites, muitos em condições sub-humanas.


Eu estava feliz: Brasília tinha me recebido de asas abertas. Achei então que já era hora de ter uma base fixa, um ponto permanente para pouso e decolagem. Pensei em comprar um terreno nos arredores da cidade porque queria muito retomar às minhas raízes mineiras, de interior. Nas proximidades da chácara do fotógrafo Rui Faquini, a 40 quilômetros do plano piloto, fiquei perplexa ao reconhecer, no alto de uma colina, o espaço que tinha visto no sonho. Era ideal para rodar a FEIRA DO SONHO, pensei.
Só que existiam uns pequenos detalhes a serem considerados : a luz elétrica não passava nem perto,a terra era ruim e não tinha água num raio de quilômetros.
Mesmo assim, comprei o terreno de 22 mil metros, que era muito barato, montei uma barraca no topo da colina e me mudei para cá.


Em 1985, institui a Fundação Bem Te Vi.
Em 1986, iniciei um longo processo de auto conhecimento com o terapeuta chileno Doro, que mudou minha vida.
Durante mais de 10 anos trabalhei com o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua fazendo vídeos e oficinas de comunicação.


Nesse meio tempo, conheci o mestre zen japonês Tokuda. Tive a sensação de ter chegado finalmente em casa, quando sentei em zazen (meditação sentada zen) pela primeira vez. Fui ordenada monja anos depois.


Em 2003 criei, com a editora Malu Salles, a produtora Caminho do Meio Criações Audiovisuais, que dirijo até hoje.
Percebi que meu sonho com Brasília era mais que um filme: ele me indicava um projeto de vida. Acreditei nele e vivo essa realidade, desde então.

O que pretendemos é que esse trabalho possa, de algum modo ,contribuir para a felicidade de todos os seres.